Contava.se na cidade que, em tempos idos, não muito distantes, salvo.erro na década de 50, Marilinda tinha.se ausentado não se sabe para onde, e regressado prenhe, não se sabe de quem, Quando o corpo se deformou, a barriga se fez notar, houve logo no povo quem afirmasse,
“Hum, Quer.me parecer que o Tó Mouco fez das suas“
Outros sussurravam,
“Qual Tó Mouco qual quê, O filho é do padre, É ele o pai da criança, De certeza”
Marilinda era uma beata compulsiva, cultivava uma imagem sacrosanta, mostrava pudor e quantas vezes repulsa por tudo o que se afastasse da moral vigente, Quem lhe quisesse dar com o paradeiro, era vê.la em grande azáfama de casa para igreja e da igreja para casa, mesmo quando o ritual litúrgico não se verificava
As doenças eram o tema dominante na tagarelice com as outras beatas e com a tia Patrocinia,
D’uma simples enxaqueca, nevralgia, conjuntivite, ou dor menstrual, facilmente se chegava à diabetes ou cancro nos intestinos
O padre solicitava os seus serviços amiúde, fossem religiosos ou outros, como quem diz, domésticos. Por isso, o povo, depositário-que-é-de-saberes-ancestrais, malvadez e ignorância (qb), não deixava os créditos por mãos alheias, e vai daí, comentava à boca.cheia,
“Marilinda, Marilinda apanharam-te com a boca na botija”
Ora, da fama, a mulher não se livrava, A posição de cócoras, quando surpreendida no colo do padre, não parecia ser confessional, nem um exorcismo de pecados, Tratava.se, isso sim, da prática ostensiva de felacio, expressão latina, mais ou menos erudita que corresponde à designação de sexo oral, É verdade
Não deixara dúvidas no poviléu, E daí até à desgraça total ia um pequeno passo
E como uma desgraça nunca vem só, também corria outra versão q’atribuía a gravidez de Marilinda a uma relação incestuosa, que por economia narrativa e outros pormenores indecorosos ou d’ordem especulativa, aqui ficam por narrar
Escrito por Ismael Umar
Sábado 27 de Janeiro de 2007, 2 graus positivos, os Neo.inquisidores saem à rua pela calada da noite e espalham o terror pelas rotundas da urbe
Cruzes brancas com a inscrição lapidar “ Vitima de aborto” reproduzem a ideologia canalha com patrocinio “anónimo”
Da próxima vez, não se esqueçam, acendam também as fogueiras
«... quando se estuda a cultura portuguesa e a história de Portugal e depois se ouve os políticos actuais, vê-se que eles não estão senão a repetir um conjunto de circunstâncias que vêm sendo repetidas desde a decadência do império, em D. João III. É quando o império se transforma em empório comercial (...) Desde então, com excepção de 50 anos do ouro do Brasil, Portugal estará continuadamente com uma divida externa acumulada; de quando em vez, por 'virtudes milagrosas', diz Eduardo Lourenço, a mão de Deus faz com que normalizemos as contas do Estado para rapidamente voltarmos ao mesmo. Fazemos sempre a mesmo coisa desde esse tempo. Agora, por exemplo, o Governo orgulha-se de ter feito um contrato com o MIT. D. João III mandou 50 estudantes justamente para Paris e Bordéus e trouxe os mais altos intelectuais destas duas cidades para Portugal para fazerem a reforma da universidade. Dez, 15 anos depois, a maior parte ou estava presa pela Inquisição ou tinha regressado. Fernando Gil, o maior filósofo da segunda metade do século XX em Portugal, morreu em Paris; o professor Damásio está nos EUA, Eduardo Lourenço continua a viver em França, mesmo depois de reformado (...)
... nostalgia de uma normalização de Portugal, na qual as elites assumam definitivamente que Portugal não tem que ser uma Irlanda, uma Finlândia, uma América, uma Alemanha. Assumir que Portugal se encontra num meio termo entre países, esses sim de facto atrasados e países de facto adiantados. Nós não precisamos de estar no pelotão da frente, ao contrário do mito de Sócrates e Cavaco continuam a alimentar. A que propósito? (...) Quando o professor Cavaco se for embora, estaremos exactamente na mesma posição do tempo de D. João III: nem os mais avançados, nem os mais atrasados (...)
O grande problema de Portugal é a modernização nunca passar das elites para baixo. Corte gorda, povo magro (...) A elite hoje tem vergonha do povo e, à força, quer transformar o povo de burro em cavalo a correr para estar no pelotão da frente. Mas cortando nas maternidades, nas escolas...»
[Miguel Real, entrevista a Adelino Gomes, Mil Folhas, 12/01/2007 - título e sublinhados meus.
GRAFIA 2
Está no rio
o embrião da noite
O rio livre
com apenas o princípio evidente
de todas as formas
A água íntima dos lábios
Fiama Hasse Pais Brandão (1938 - 20 de Janeiro 2007)
Duas da manhã, Páro em frente ao vazio numa artéria da urbe e tudo me parece inerte, fossilizado à minha volta, Uma natureza morta em forma de árvore nua e seca, dispõe.se a ordenar.me o sentido da vida, Pisca as cores vermelha, amarela e verde, exactamente pela ordem que se escrevem aqui, Há um tempo de espera não-se-sabe-bem-de-quê-e-por-quê, Não é possivel chegar mais além do espaço alcançado pelos sentidos, Fico à espera de Godot, num atrevimento teatral ou quiçá filosófico, traduzido em pensamentos e palavras balbuciados contra o pára.brisas
Muda de cor e passa a vermelho
Ainda ali estou, no virar de esquina, na subida íngreme, ou num cruzamento de vidas efémeras, A natureza morta continua corporizada num poste tricolor, como um indicador cénico, Tão breve, tão temporariamente exacta que chega a tornar.se fugidia, Figura arenosa pronta a esboroar.se ao mais leve sopro
Muda de cor e passa a verde
Desfaço.me definitivamente de Godot, e da espera contida de um nada ausente, Estou na linha de partida a um pequeno passo entre a vida e a morte, Revejo o espelho retrovisor e arranco directo ao futuro
Cavaleiro, 1912
No passado fim.de.semana as televisões davam imagens de filas de pessoas à porta da Gulbenkian, aguardando a vez para ver uma exposição de pintura como se de um museu do norte da Europa se tratasse
Confesso algum espanto perante tamanho magote de curiosos, em busca da arte primordial
Pintura (tiro), c. 1916
Tratava.se de uma mostra de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), que foi para Almada Negreiros e Fernando Pessoa, o pintor mais relevante da arte portuguesa nas primeiras décadas do século XX, Tal como outros portugueses em dominios tão diferentes, como a literatura ou cinema, instalou.se em París onde conheceu entre outros, Modigliani e Brancusi, pioneiros na renovação plástica deste século
Amadeo de Souza-Cardoso experimentou quase todas as propostas que lhe foram dadas a conhecer nessa altura, No entanto, o seu trabalho mostra um profundo interesse pela estética do Cubismo que o levou a expor em importantes exposições internacionais como sejam, Armory Show e Salon des Indépendants, Foi praticamente esquecido, após a sua morte quando contava 30 anos de idade
Grande parte dos especialistas de arte, apontam Souza-Cardoso, juntamente com Vieira da Silva e Paula Rego, o maior representante e a principal referência da pintura portuguesa do século XX
Por detrás desta porta,
de uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.
Deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.
Mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.
Que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.
Era o dia de aniversário de Dália, O pai passeava com um copo na mão d’um lado para o outro da sala, e procurava o meu olhar por entre as cabeças dos convidados, A mãe bulhava com as travessas de pastéis de bacalhau e rissóis, interrompendo conversas pueris, enquanto zurzia frases com azedume
Estava sempre assim, mesmo quando não havia festa de anos
António, era o irmão mais novo de Dália, tinha o nariz e os olhos semelhantes a um corvo, o cabelo preto espigado empinava.lhe a nuca, tal qual uma ave de rapina, No dia de aniversário da irmã, passou o tempo pespegado nas saias da mãe, choramingava e cacarejava, reclamando não-se-sabe-bem-o-quê, Deixei um pé para trás na intenção acidental de o fazer tropeçar, ele topou e chamou.me porca.
O pai lançou.lhe um berro, e por segundos conseguiu amansá.lo
Na sala restava Dália, as velas do bolo, e meia dúzia de taças de champanhe vazias, A festa encaminhava.se para o fim, aproveitei o momento para me despedir
No meu encalce, veio o pai dela com a frase de sempre,
“Já vais Julia, Fica mais um pouco”
Acompanhava-me à porta, Dava-me um beijo na testa, e com a parte exterior das mãos acariciava.me o rosto, prolongando o movimento suave pelo pescoço até me roçar os seios, Deixava.me com aquela impressão táctil, sem outra explicação, que não fosse a de um gesto natural
Depois ciciava com a voz trémula
”Vai com deus filha. Vai com deus”
Escrito por Ismael Umar
"Alzira ouvia sempre com atenção as histórias que o pai lhe contava junto à lareira
A primeira viagem que fiz pela montanha, o vento estava em tal desatino que me sacudia de um lado para o outro da vereda, enquanto o frio tornava insensiveis as mãos e os pés, À medida que avançava, o ranho escorria das narinas, cristalizando os pingos queixo abaixo, O pior foi as mulas, que resolveram permanecer estáticas, sem arredar pé,
Não me conformei com a decisão das bestas, e vai daí, encostei o ombro no traseiro da mais nova, tentando movê.la, mas aquele esforço, transformava cada impulso na inglória sensação de empurrar uma parede, Sentei-me numa pedra húmida e fiquei à espera que a birra lhes passasse
Ao longe, um vento que cortava as faces, fazia ecoar um uivo pelo vale, Às tantas, já no silêncio do entardecer, um ruído abanou as giestas, Um Lobo surgia ofegante d’entre os arbustos, Parou, sentou-se sobre as patas traseiras a observar.me, Senti o corpo tremer enregelado num misto de frio e de medo, As mulas suspenderam a birra, pareciam agitadas e prontas a reiniciar a caminhada
À memória chegavam.me histórias macabras de Lobos que devoravam crianças no bosque e dizimavam pastores e rebanhos por inteiro, Tinha na imagem, os homens da vila armados e organizados em perseguição à besta sanguinária
O Lobo no entanto continuava ali, Imóvel, Inofensivo, até que ergueu o focinho, lançou um uivo e afastou.se
“E depois” Perguntava Alzira
Depois, prossegui o caminho de regresso a casa.
Juntei assim mais uma história, a tantas outras sobre lobos”
Escrito por Ismael Umar
Quando iniciei este blogue, nunca me passou pela cabeça dissertar acerca do lixo, mas pronto, é mais uma
Foi-assim-que-na-noite-de-fim-de-ano, 2006/2007, a 100 metros do parque de campismo do Pião, um energúmeno transportando uma carrinha de caixa aberta, resolveu desfazer-se de alguns monos, e contaminar a paisagem com restos em fim de vida, dentre eles era possivel vislumbrar, mesas articuladas, máquinas de lavar loiça ou roupa, frigorifico, detergentes em embalagens de cartão e vidro, colchões, cobertores, calças, cuecas verdes, e outros dejectos de uma vida provavelmente paga a prestações
O senhor Engenheiro propos o choque tecnológico, achei bem, e ainda acho, Porém, de outro choque carecia o poviléu, que pudesse higienizar.lhe a mente conspurcada, Pois há por aí certa fauna que não hesita violar as mais elementares regras de cidadania
Há por aí muito canalha sem educação ambiental, ignorando que os resíduos assim lançados, acarretam problemas para a saúde pública, principalmente na poluição do solo e das águas superficiais e subterrâneas, Eduquem.nos por favor
. Medo
. Guernica 26 de Abril de 1...
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