Para todos os que fazem anos em Junho, aqui fica um poema belissimo do cabo-verdeano José Luis Tavares:
CARTA A MIM MESMO
NO DIA DOS MEUS ANOS
Como poeta nasci já quase canónico
(vede se isto não tem seu quê de cómico),
fazem-me quase um preto gentio camões —
não ligueis, que amanhã príncipe dos anões
serei. É certo que não errei o fio à vida,
seus corsos e naufrágios — fui mais fundo
que os demais? — em modo assaz rotundo
percorri-lhe as voltas, os sustos, a recaída.
Saberão vez alguma que nesta escura feira
tudo é sombra e deriva? Que nem as agudas
razões do pranto desvanecem esta surdina?
Não te iludas com os louros na cabeleira:
mais depressa se rirão das tuas agruras
dizendo «outro que não escapou à sina».
José Luís Tavares
"... Ah o medo vai ter tudo
tudo
(penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos"
[Alexandre O'Neill, O Poema pouco original do medo]
De novo Cesariny
"Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco..."
Retomo o poema de Jorge de Sena que nos devolve ao lugar pátrio, Esse tal canto de afectos que une o indígena ao húmus primordial
Tu és a terra em que pouso.
Macia, suave, terna, e dura o quanto baste
a que teus braços como tuas pernas
tenham de amor a força que me abraça
És também pedra qual a terra às vezes
contra que nas arestas me lacero e firo,
mas de musgo coberta refrescando
as próprias chagas de existir contigo.
E sombra de árvores, e flores e frutos,
rendidos a meu gosto e meu sabor.
E uma água cristalina e murmurante
que me segreda só de amor no mundo.
És a terra em que pouso. Não paisagem,
não Madre-Terra nem raptada ninfa
de bosques e montanhas. Terra humana
em que me pouso inteiro e para sempre.
De novo O'Neill,
" O meu marido saiu de casa no dia 25 de Janeiro. Levava uma bicicleta a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro, vestia calças azuis de zuarte, camisa verde, blusão cinzento, tipo militar, e calçava botas de borracha e tinha chapéu cinzento e levava na bicicleta um saco com uma manta e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo e uma panela de esmalte azul. Como não tive mais noticias, espero o pior."
Quadro de Almada Negreiros
Walt whitman poeta Norte.Americano cuja obra afirma claramente a importância e a unicidade de todos os seres humanos. A sua ruptura com a poética tradicional, tanto no plano do conteúdo como no do estilo, traçou um rumo, seguido pelas posteriores gerações de poetas, entre os quais se destaca o nosso Fernando Pessoa
Witman morreu no dia 26 de Março de 1892 e escreveu entre tantas coisas, o texto que se segue
“Não deixes que termine o día sem teres crescido um pouco sem teres sido feliz, sem teres aumentado os teus sonhos. Não te deixes vencer pelo desalento. Não permitas que alguém retire o direito de te expressares, que é quase um dever. Não abandones as ânsias de fazer da tua vida algo extraordinário. Não deixes de acreditar que as palavras e a poesía podem mudar o mundo. Aconteça o que acontecer a nossa essência ficará intacta. Somos seres cheios de paixão. A vida é deserto e oásis. Derruba-nos, ensina-nos, converte-nos em protagonistas de nossa própria história. Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua: tu podes tocar uma estrofe. Não deixes nunca de sonhar, porque os sonhos tornam o homem livre.” Walt Whitman
Dia 21 de Março comemora.se o Dia Mundial da Poesia, e porque nesse dia a rede vai ficar infectada com lamechices, faço já hoje o trabalho de casa com um poema lindo do nosso Eugénio de Andrade, ao jeito de dois em um, uma vez que pode ficar já de reserva para o dia da Mãe
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
in "Os Amantes Sem Dinheiro" (1950) Eugénio de Andrade
Mulher andando nua pela casa
envolve a gente de tamanha paz.
Não é nudez datada, provocante.
É um andar vestida de nudez,
inocência de irmã e copo d'água. O corpo nem sequer é percebido
pelo ritmo que o leva.
Transitam curvas em estado de pureza,
dando este nome à vida: castidade. Pêlos que fascinavam não perturbam.
Seios, nádegas (tácito armistício)
repousam de guerra. Também eu repouso.
in "O Amor Natural" , Carlos Drummond de Andrade
Ilustração de Milton DaCosta
O'Neill, o mestre que topava as manhas e a cretinice de um povo em espera
"Na mediania é que está a sensaboria, já lá (não) diz o provérbio. Em Portugal nada dura mais que quinze dias, quinze dias que podem ser muitos anos, claro. Como não temos vida colectiva intensa e não vivemos problemas comuns, os casos (excepção feita ao do Eusébio), como sucede noutros países, habituamo-nos muito depressa (e aborrecemo-nos) ao que é novo, diferente, Daí o nosso cepticismo de raiz e a estranha capacidade (?) de banalizarmos tudo. É que o novo não tem em nós consequências. È apenas vidrinho, uma missanga de cor diferente. O que nós queremos é que nos façam ó-ó"
[Alexandre O'Neill, in Alexandre O'Neill Uma Biografia Literária, de Maria Antónia Oliveira, 2007]
GRAFIA 2
Está no rio
o embrião da noite
O rio livre
com apenas o princípio evidente
de todas as formas
A água íntima dos lábios
Fiama Hasse Pais Brandão (1938 - 20 de Janeiro 2007)